para além do espaço
“formigas no palato” produções 2004
1ª parte
10... 9... 8... 7... 6... 5... 4... 3... 2... 1... IGNIÇÃO!
O poder de descolagem era esmagador. Fazia-nos sentir os olhos enterrarem-se na nossa consciência e os órgãos comprimirem-se contra a parede das nossas costas. Perante tamanho poder de propulsão era-nos quase impossível sequer olhar aos lados para ver as labaredas que rodeavam a nave e as expressões violentas dos colegas de bordo. Não era um retrato vulgar que se esquecesse facilmente. De todo.
Houston 3.11, encontramo-nos fora da órbita da Terra. A fase de descolagem foi concluída com sucesso. Abram o champanhe por nós.
A processar informação...
A nossa equipe era liderada por Casimiro, um comandante experiente habituado a este tipo de cargo. Este senhor de olhar profundo e busto imponente era um veterano de guerra que perdera um pé e dois dedos ao serviço da pátria. Mesmo a gravidade zero usava sempre uma bengala negra de pega prateada com a qual martelava o chão e as paredes constantemente. E dizia com o seu jeito peculiar de falar por entre os dentes cerrados tal qual um ventríloquo, ser capaz de concretizar as suas missões mais delicadas de olhos vendados. Bastava querer.
A sua confiança impunha respeito e todos nós sentíamos o desejo de dar o nosso melhor ao seu serviço.
A inteligência artificial dos computadores a bordo era extraordinária e quando posta à prova, fosse em jogos de xadrez, fosse em avaliações astronómicas ou tarefas de precisão mais apurada, mostrava-se sempre competente e eficaz.
Da lua a Saturno é um passinho, dizia Casimiro muito convicto da sua calculadora electrónica ao somar e subtrair algarismos. Fazia-o com destreza e devo dizer que todos nós, naquele dia, acreditámos nele.
28375 + 78325 + 1562 – 942 = X
Quarenta dias de viagem, há provisões que cheguem para todos e combustível ao pontapé. Não há que enganar. E nós acreditámos.
Ao viajar no espaço, a gravidade zero proporcionava-nos movimentos fluidos e serenos, livres de tensões. Tal liberdade dava-nos uma flexibilidade motora e espacial extraordinárias o que nos fazia fortalecer a nossa própria flexibilidade mental.
Casimiro era um homem de poucas palavras. Porém quando falava todos se calavam para o escutar. Suas palavras eram incisivas e estimulantes.
Como vedes a lua a esta distância não mede mais que um palmo de diâmetro.
E nós, efusivos, amontoávamo-nos à janela para observá-la.
2ª parte
Aquilo que mais sentia falta era de ter os pés assentes no chão. Um chão estável e previsível. Um chão verdadeiro.
O silêncio, inicialmente monótono, foi ganhando o seu próprio espaço na viagem, até que cansados de se ouvirem a si próprios os nossos pensamentos refrearam a sua voracidade habitual e deixaram as nossas mentes calmas e serenas. Assim, quando nos tempos livres ouvíamos música, normalmente clássica, era como se usássemos o sentido da audição pela primeira vez, e toda a melodia da música atingia-nos de um modo por demais físico.
1 = 0 + 1
(Beethoven)
Da Terra apenas trouxera alguma música, muitos livros e um peixe num pequeno aquário, o Beethoven. Dera-lhe esse nome pela vivacidade que ganhava perante a música do compositor. O aquário de Beethoven era apropriado à gravidade zero: todo fechado excepto em dois orifícios munidos de duas pequenas válvulas. Uma que fazia a circulação de oxigénio e outra pela qual o alimento lhe era fornecido. Como o aquário não estava completamente cheio, a água produzia um efeito visual deveras peculiar, e não raras vezes dava por mim a fixá-lo, abstraído e a divagar. «A leveza da água, como um pensamento sem peso, mas materializado.»
Depois, despertava do transe.
(ainda a respeito de Beethoven)
Havia outra razão que me fazia divagar ao fixar o aquário de Beethoven. Aquele pequeno peixe, enfiado num pequeno aquário, com todo aquele ambiente flutuante em seu redor, reflectia um pouco o que eu sentia. Afinal de contas a principal diferença entre mim e ele era a de que o meu aquário era ligeiramente maior. E todas aquelas estrelas perdidas na distância do espaço e do tempo, pareciam elas fixar-me também e divagar em toda a sua dimensão. E como deviam ser grandes.
Recolher o maior número possível de amostras para respectiva análise.
Alguns meses após o início da viagem já nos era difícil recordar o tempo anterior à missão, como se sempre tivéssemos vivido a bordo da nave e qualquer outro tipo de vida ou rotina nos fosse alheia. A nossa ligação à nave era de tal modo intrínseca que a fronteira entre ela e a tripulação não era de todo perceptível.
Era capaz de passar horas a fio a fixar a parede bege do meu compartimento.
3ª parte
Fenómeno estranho detectado a 72 horas em rota de colisão.
Sempre havia aprendido e estudado a natureza dos buracos negros mas nada me preparara para tamanho panorama. Era como se tudo o que imaginara fosse agora multiplicado por mil.
(...) Algo de muito grande, demasiado grande para compreendermos estava a acontecer connosco. A única certeza que tinha, que me enchia de uma estranha melancolia, era de que nada voltaria a ser como dantes.
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(o relatório)
Temperatura interior, 25ºC.
Homeostase, estabilizada.
Sistemas informáticos, operacionais.
Tripulação, activa.
Combustível, a três quartos.
Nenhum padrão estrelar reconhecido.
Localização, desconhecida.
Data, incerta.
Rumo, desconhecido.
Um pequeno botão pressionado e uma função prontamente obedecida pelo computador de serviço. Três incógnitas na equação não são problema, mas à distância que estamos da próxima estrela qualquer tipo de cálculo é supérfluo.
X + Y – 7513 = Z + 15
A processar nova informação...
Por vezes dava por mim a falar sozinho.
Amanhã será passado, e todo o passado já esteve presente. Mas o presente foge-me a todo o instante. Não te lembras?
Frases desconexas, sem sentido. Tinha percepção de que estas frases me saiam pela boca, mas sobre elas não tinha qualquer autoridade.
Talvez se me transcendesse a calor e em ebulição me sentisse o pensamento fluir para o cosmos.
E mesmo assim, a estranheza de tão invulgar comportamento não provocava em mim qualquer sinal de perturbação.
Nada.
Sinto que qualquer coisa está a crescer dentro da nave e dentro de mim. Algo maligno está a tomar conta do meu corpo e dos meus pensamentos. Como raízes obscuras enterrando-se no solo, infectando-o lentamente. A todo o instante, estas imagens fragmentadas que me violam a retina, de sangue a escorrer das paredes, as paredes a contorcerem-se. Os outros fazem-se despercebidos para eu pensar que estou a ficar louco. Mas são maus actores. Dá vontade de rir. E rir e rir até esquecer a razão de tudo.
Os gritos das paredes são subtis, mas incapazes de deixar o mais gélido humano indiferente. E eles fingem ignorar a inquietude do vermelho, das paredes a sangrarem, daquele cenário aterrorizador a escorrer para as nossas cabeças. Mas eu consigo brincar ao joguinho deles. É fácil, basta fazer de conta.
Que péssimos actores.
(Instruções da caixinha de música)
Dar à manivela no sentido dos ponteiros do relógio e descontrair ao som da melodia.
Sugestão: apreciar a música com um bom cocktail tropical de frutos exóticos, com duas pedras de gelo, com uma foto de uma praia do Pacífico à sua frente.
Ontem vi um bando de pássaros a voar ao lado da janela do meu compartimento. Pareciam gaivotas. Gaivotas famintas. Eu sei porque voavam junto à nave. Estes bichos têm um sentido de olfacto apuradíssimo, sei que farejaram o Beethoven. Só podem. Mas não te preocupes peixinho. Não te preocupes que o papá está preparado para o que der e vier. Se a coisa correr pró torto o papá tem um frasco de insecticida no bolso capaz de dar conta do recado.
Deixa-os vir.
(Justina)
Justina é um dos tripulantes novos que apareceu após o acidente. Eu sei isto e ela também o sabe. Também sei que ela é ignorada pelos outros, e que tende a aproximar-se mais a mim pela atenção que lhe dou. À primeira vista Justina parece uma rapariga inocente, incapaz de fazer mal a um insecto. Uma verdadeira miss. Mas mesmo que os seus olhos ingénuos consigam disfarçar a demência dos seus pensamentos, eu bem sei que as suas palavras são mais corrosivas que o el ácido sulfúrico, e que os seus actos camuflados carregam a violência de seus delírios.
E como os seus olhos ingénuos parecem brilhar quando se aproxima de mim e me segreda ao ouvido,
vamos fazer coisas perversas... hmmm... perversas...
«Presta atenção, é aqui que entra o contrabaixo!», repetia Beethoven fervorosamente.
Os outros andam a conspirar contra mim. Eu sei que sim. Fazem planos de me fechar no quarto amarelo. Querem que vá fazer companhia a Casimiro. Fazem de conta que o acidente nunca aconteceu e dizem que este tempo todo fora da Terra me deu a volta à carola. Que tenho a imaginação fértil para este género de histórias da Carochinha voadora. Dizem que estamos a quinze dias da Terra e que toda a nossa missão foi um êxito. Incrível a facilidade que esta gente tem em mentir. É de morrer a rir devagarinho. Se em vez de um insecticida no bolso tivesse uma moto-serra mostrava-lhes a insanidade toda.
Ser caçado como um animal selvagem faz-nos expor instintos de que nós próprios desconhecemos. A adrenalina possui-nos o corpo deixando a nossa mente com um papel secundário. O coração salta-nos à boca seca e a ansiedade torna-se destrutiva. Nunca os delírios de Justina me estiveram tão presentes. Depois, uma picada na perna esquerda. O coração abranda, a ansiedade esvai-se. E a sensação dos sentidos a desvanecerem. Os sons distantes, a visão deturpada, o tacto anestesiado, como num sonho.
No quarto amarelo, eu, Casimiro e Justina parecemos três zombies, completamente dominados pelas drogas que os outros nos dão. Até o Beethoven está mais apático. Agora querem-nos fazer crer que está tudo bem, que já chegámos a Terra e que nos encontramos numa clínica psiquiátrica qualquer de recuperação. Que tudo vai correr bem. Eu bem sei que tudo isso é mentira porque aos meus olhos a água do aquário de Beethoven nunca parou de flutuar. Não me venham com blá blázinhos de merda.
Entretanto os outros levaram Casimiro e Justina do quarto, embrulhados em grandes sacos negros. Também levaram o Beethoven, deixando-me completamente só. Eu sei porque os levaram a todos. As provisões da viagem começavam a escassear e com isso a fome havia levado as suas mentes doentias a recorrer ao canibalismo. E eu era a próxima presa.
(a ementa)
A ementa para o jantar desta noite é peixe grelhado para abrir a refeição e como segundo prato temos a especialidade da casa, sugestão do Chefe, bifinhos de carne humana com cogumelos, temperados com sangue fresco. Para sobremesa temos miolos doces com molho de esperma, receita da avózinha.
Bon appétit dementes.
E nisto a cabeleira do maestro caiu ao chão de tanta convulsão exibindo a sua cabeça calva. Hipnotizado, o maestro continuou a articular a sinfonia com toda a destreza.
Já era normal ter vários pesadelos à noite. Um efeito secundário daquelas drogas fortes, calculava. Às vezes até os tinha acordado. E como pareciam reais.
No meio destas manifestações de terror havia um pesadelo em particular que me deixava bastante perturbado. Tinha-o quase todas as noites antes de acordar aos gritos, agarrado aos braços. O aquário de Beethoven caia no chão desfazendo-se em estilhaços. Beethoven contorcia-se em espasmos no chão. Eu, em pânico, via-o morrer asfixiado. Depois pegava num bocado de vidro partido e começava a rasgar a carne dos meus braços.
Rumo, desconhecido.
FF
1ª parte
10... 9... 8... 7... 6... 5... 4... 3... 2... 1... IGNIÇÃO!
O poder de descolagem era esmagador. Fazia-nos sentir os olhos enterrarem-se na nossa consciência e os órgãos comprimirem-se contra a parede das nossas costas. Perante tamanho poder de propulsão era-nos quase impossível sequer olhar aos lados para ver as labaredas que rodeavam a nave e as expressões violentas dos colegas de bordo. Não era um retrato vulgar que se esquecesse facilmente. De todo.
Houston 3.11, encontramo-nos fora da órbita da Terra. A fase de descolagem foi concluída com sucesso. Abram o champanhe por nós.
A processar informação...
A nossa equipe era liderada por Casimiro, um comandante experiente habituado a este tipo de cargo. Este senhor de olhar profundo e busto imponente era um veterano de guerra que perdera um pé e dois dedos ao serviço da pátria. Mesmo a gravidade zero usava sempre uma bengala negra de pega prateada com a qual martelava o chão e as paredes constantemente. E dizia com o seu jeito peculiar de falar por entre os dentes cerrados tal qual um ventríloquo, ser capaz de concretizar as suas missões mais delicadas de olhos vendados. Bastava querer.
A sua confiança impunha respeito e todos nós sentíamos o desejo de dar o nosso melhor ao seu serviço.
A inteligência artificial dos computadores a bordo era extraordinária e quando posta à prova, fosse em jogos de xadrez, fosse em avaliações astronómicas ou tarefas de precisão mais apurada, mostrava-se sempre competente e eficaz.
Da lua a Saturno é um passinho, dizia Casimiro muito convicto da sua calculadora electrónica ao somar e subtrair algarismos. Fazia-o com destreza e devo dizer que todos nós, naquele dia, acreditámos nele.
28375 + 78325 + 1562 – 942 = X
Quarenta dias de viagem, há provisões que cheguem para todos e combustível ao pontapé. Não há que enganar. E nós acreditámos.
Ao viajar no espaço, a gravidade zero proporcionava-nos movimentos fluidos e serenos, livres de tensões. Tal liberdade dava-nos uma flexibilidade motora e espacial extraordinárias o que nos fazia fortalecer a nossa própria flexibilidade mental.
Casimiro era um homem de poucas palavras. Porém quando falava todos se calavam para o escutar. Suas palavras eram incisivas e estimulantes.
Como vedes a lua a esta distância não mede mais que um palmo de diâmetro.
E nós, efusivos, amontoávamo-nos à janela para observá-la.
2ª parte
Aquilo que mais sentia falta era de ter os pés assentes no chão. Um chão estável e previsível. Um chão verdadeiro.
O silêncio, inicialmente monótono, foi ganhando o seu próprio espaço na viagem, até que cansados de se ouvirem a si próprios os nossos pensamentos refrearam a sua voracidade habitual e deixaram as nossas mentes calmas e serenas. Assim, quando nos tempos livres ouvíamos música, normalmente clássica, era como se usássemos o sentido da audição pela primeira vez, e toda a melodia da música atingia-nos de um modo por demais físico.
1 = 0 + 1
(Beethoven)
Da Terra apenas trouxera alguma música, muitos livros e um peixe num pequeno aquário, o Beethoven. Dera-lhe esse nome pela vivacidade que ganhava perante a música do compositor. O aquário de Beethoven era apropriado à gravidade zero: todo fechado excepto em dois orifícios munidos de duas pequenas válvulas. Uma que fazia a circulação de oxigénio e outra pela qual o alimento lhe era fornecido. Como o aquário não estava completamente cheio, a água produzia um efeito visual deveras peculiar, e não raras vezes dava por mim a fixá-lo, abstraído e a divagar. «A leveza da água, como um pensamento sem peso, mas materializado.»
Depois, despertava do transe.
(ainda a respeito de Beethoven)
Havia outra razão que me fazia divagar ao fixar o aquário de Beethoven. Aquele pequeno peixe, enfiado num pequeno aquário, com todo aquele ambiente flutuante em seu redor, reflectia um pouco o que eu sentia. Afinal de contas a principal diferença entre mim e ele era a de que o meu aquário era ligeiramente maior. E todas aquelas estrelas perdidas na distância do espaço e do tempo, pareciam elas fixar-me também e divagar em toda a sua dimensão. E como deviam ser grandes.
Recolher o maior número possível de amostras para respectiva análise.
Alguns meses após o início da viagem já nos era difícil recordar o tempo anterior à missão, como se sempre tivéssemos vivido a bordo da nave e qualquer outro tipo de vida ou rotina nos fosse alheia. A nossa ligação à nave era de tal modo intrínseca que a fronteira entre ela e a tripulação não era de todo perceptível.
Era capaz de passar horas a fio a fixar a parede bege do meu compartimento.
3ª parte
Fenómeno estranho detectado a 72 horas em rota de colisão.
Sempre havia aprendido e estudado a natureza dos buracos negros mas nada me preparara para tamanho panorama. Era como se tudo o que imaginara fosse agora multiplicado por mil.
(...) Algo de muito grande, demasiado grande para compreendermos estava a acontecer connosco. A única certeza que tinha, que me enchia de uma estranha melancolia, era de que nada voltaria a ser como dantes.
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Temperatura interior, 25ºC.
Homeostase, estabilizada.
Sistemas informáticos, operacionais.
Tripulação, activa.
Combustível, a três quartos.
Nenhum padrão estrelar reconhecido.
Localização, desconhecida.
Data, incerta.
Rumo, desconhecido.
Um pequeno botão pressionado e uma função prontamente obedecida pelo computador de serviço. Três incógnitas na equação não são problema, mas à distância que estamos da próxima estrela qualquer tipo de cálculo é supérfluo.
X + Y – 7513 = Z + 15
A processar nova informação...
Por vezes dava por mim a falar sozinho.
Amanhã será passado, e todo o passado já esteve presente. Mas o presente foge-me a todo o instante. Não te lembras?
Frases desconexas, sem sentido. Tinha percepção de que estas frases me saiam pela boca, mas sobre elas não tinha qualquer autoridade.
Talvez se me transcendesse a calor e em ebulição me sentisse o pensamento fluir para o cosmos.
E mesmo assim, a estranheza de tão invulgar comportamento não provocava em mim qualquer sinal de perturbação.
Nada.
Sinto que qualquer coisa está a crescer dentro da nave e dentro de mim. Algo maligno está a tomar conta do meu corpo e dos meus pensamentos. Como raízes obscuras enterrando-se no solo, infectando-o lentamente. A todo o instante, estas imagens fragmentadas que me violam a retina, de sangue a escorrer das paredes, as paredes a contorcerem-se. Os outros fazem-se despercebidos para eu pensar que estou a ficar louco. Mas são maus actores. Dá vontade de rir. E rir e rir até esquecer a razão de tudo.
Os gritos das paredes são subtis, mas incapazes de deixar o mais gélido humano indiferente. E eles fingem ignorar a inquietude do vermelho, das paredes a sangrarem, daquele cenário aterrorizador a escorrer para as nossas cabeças. Mas eu consigo brincar ao joguinho deles. É fácil, basta fazer de conta.
Que péssimos actores.
(Instruções da caixinha de música)
Dar à manivela no sentido dos ponteiros do relógio e descontrair ao som da melodia.
Sugestão: apreciar a música com um bom cocktail tropical de frutos exóticos, com duas pedras de gelo, com uma foto de uma praia do Pacífico à sua frente.
Ontem vi um bando de pássaros a voar ao lado da janela do meu compartimento. Pareciam gaivotas. Gaivotas famintas. Eu sei porque voavam junto à nave. Estes bichos têm um sentido de olfacto apuradíssimo, sei que farejaram o Beethoven. Só podem. Mas não te preocupes peixinho. Não te preocupes que o papá está preparado para o que der e vier. Se a coisa correr pró torto o papá tem um frasco de insecticida no bolso capaz de dar conta do recado.
Deixa-os vir.
(Justina)
Justina é um dos tripulantes novos que apareceu após o acidente. Eu sei isto e ela também o sabe. Também sei que ela é ignorada pelos outros, e que tende a aproximar-se mais a mim pela atenção que lhe dou. À primeira vista Justina parece uma rapariga inocente, incapaz de fazer mal a um insecto. Uma verdadeira miss. Mas mesmo que os seus olhos ingénuos consigam disfarçar a demência dos seus pensamentos, eu bem sei que as suas palavras são mais corrosivas que o el ácido sulfúrico, e que os seus actos camuflados carregam a violência de seus delírios.
E como os seus olhos ingénuos parecem brilhar quando se aproxima de mim e me segreda ao ouvido,
vamos fazer coisas perversas... hmmm... perversas...
«Presta atenção, é aqui que entra o contrabaixo!», repetia Beethoven fervorosamente.
Os outros andam a conspirar contra mim. Eu sei que sim. Fazem planos de me fechar no quarto amarelo. Querem que vá fazer companhia a Casimiro. Fazem de conta que o acidente nunca aconteceu e dizem que este tempo todo fora da Terra me deu a volta à carola. Que tenho a imaginação fértil para este género de histórias da Carochinha voadora. Dizem que estamos a quinze dias da Terra e que toda a nossa missão foi um êxito. Incrível a facilidade que esta gente tem em mentir. É de morrer a rir devagarinho. Se em vez de um insecticida no bolso tivesse uma moto-serra mostrava-lhes a insanidade toda.
Ser caçado como um animal selvagem faz-nos expor instintos de que nós próprios desconhecemos. A adrenalina possui-nos o corpo deixando a nossa mente com um papel secundário. O coração salta-nos à boca seca e a ansiedade torna-se destrutiva. Nunca os delírios de Justina me estiveram tão presentes. Depois, uma picada na perna esquerda. O coração abranda, a ansiedade esvai-se. E a sensação dos sentidos a desvanecerem. Os sons distantes, a visão deturpada, o tacto anestesiado, como num sonho.
No quarto amarelo, eu, Casimiro e Justina parecemos três zombies, completamente dominados pelas drogas que os outros nos dão. Até o Beethoven está mais apático. Agora querem-nos fazer crer que está tudo bem, que já chegámos a Terra e que nos encontramos numa clínica psiquiátrica qualquer de recuperação. Que tudo vai correr bem. Eu bem sei que tudo isso é mentira porque aos meus olhos a água do aquário de Beethoven nunca parou de flutuar. Não me venham com blá blázinhos de merda.
Entretanto os outros levaram Casimiro e Justina do quarto, embrulhados em grandes sacos negros. Também levaram o Beethoven, deixando-me completamente só. Eu sei porque os levaram a todos. As provisões da viagem começavam a escassear e com isso a fome havia levado as suas mentes doentias a recorrer ao canibalismo. E eu era a próxima presa.
(a ementa)
A ementa para o jantar desta noite é peixe grelhado para abrir a refeição e como segundo prato temos a especialidade da casa, sugestão do Chefe, bifinhos de carne humana com cogumelos, temperados com sangue fresco. Para sobremesa temos miolos doces com molho de esperma, receita da avózinha.
Bon appétit dementes.
E nisto a cabeleira do maestro caiu ao chão de tanta convulsão exibindo a sua cabeça calva. Hipnotizado, o maestro continuou a articular a sinfonia com toda a destreza.
Já era normal ter vários pesadelos à noite. Um efeito secundário daquelas drogas fortes, calculava. Às vezes até os tinha acordado. E como pareciam reais.
No meio destas manifestações de terror havia um pesadelo em particular que me deixava bastante perturbado. Tinha-o quase todas as noites antes de acordar aos gritos, agarrado aos braços. O aquário de Beethoven caia no chão desfazendo-se em estilhaços. Beethoven contorcia-se em espasmos no chão. Eu, em pânico, via-o morrer asfixiado. Depois pegava num bocado de vidro partido e começava a rasgar a carne dos meus braços.
Rumo, desconhecido.
FF
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